segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Barroso e a Presunção de Inocência: Você realmente conhece a posição do Ministro?

Por: Igor Luis Pereira e Silva

Professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

A comunidade jurídica entrou em choque com a posição do Supremo Tribunal Federal sobre o princípio da presunção da inocência. Muitos anunciaram o falecimento da Constituição de 1988, após a Corte, por 6 votos a 5, reconhecer a possibilidade de imposição de prisão-pena após a condenação em 2º grau, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. O que pensa o Ministro Luís Roberto Barroso? Quais são os fundamentos da sua decisão?

     Barroso estruturou o seu voto de 29 páginas em três partes: a) contextualizou o debate, reconhecendo que o sistema punitivo brasileiro funciona extremamente mal; b) descreveu a oscilação da jurisprudência do STF sobre o assunto; c) analisou os pedidos cautelares formulados, em especial sobre a legitimidade do legislador em condicionar o cumprimento da pena ao trânsito em julgado da decisão condenatória.

     A controvérsia nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44 é bem simples: podemos realizar a execução antecipada da pena no Brasil, diante da proibição do artigo 283, do Código de Processo Penal?


“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do 3 processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”

     Se o próprio Código de Processo Penal determina que só pode haver prisão-pena após sentença condenatória transitada em julgado, como defender a antecipação da pena no Brasil?

     O Ministro Barroso argumenta que o sistema penal brasileiro não tem funcionado adequadamente. Enfraquece a tutela dos bens jurídicos, a possibilidade dos réus aguardarem em liberdade o trânsito em julgado dos Recursos Extraordinários e Especiais: " Ao se permitir que a punição penal seja retardada por anos e mesmo décadas, cria-se um sentimento social de ineficácia da lei penal e permite-se que a morosidade processual possa conduzir à prescrição dos delitos".

O sistema que tínhamos não era garantista. Ele era grosseiramente injusto e estimulava as pessoas a voltarem ao tempo da vingança privada e quererem fazer justiça com as próprias mãos.

     Barroso imputa ainda o alto índice de prisões preventivas decretadas (cerca de 40% dos presos) à demora na imposição da prisão-pena: "Para evitar a impunidade prolongada, quando não a prescrição, os juízes decretam a prisão antecipada". Há casos de homicídio em que se demora mais de 10 anos para executar a pena, em razão de recursos meramente protelatórios.

      A ausência de um direito penal minimamente efetivo e igualitário funciona como um estímulo a diversos tipos de criminalidade. Para o Ministro, "criamos um país no qual o crime frequentemente compensa".

     O Ministro tomou a sua decisão com base nos números também. As estatísticas comprovam que os Recursos Extraordinários e Especiais não costumam levar à absolvição ou ao abrandamento relevante da situação do réu. Sob uma perspectiva pragmática, apenas postergariam o início do cumprimento da pena. A solução para o sistema criminal jamais será um modelo de processos que não termina nunca:

O percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu é irrisório, inferior a 1,5% . Mais relevante ainda: de 1.01.2009 a 19.04.2016, em 25.707 decisões de mérito proferidas em recursos criminais pelo STF (REs e agravos), as decisões absolutórias não chegam a representar 0,1% do total de decisões5 . No Superior Tribunal de Justiça, de acordo com dados do projeto Supremo em Números, da Fundação Getúlio Vargas, a média de provimento de recursos especiais (tanto os admitidos na origem como os que são processados via agravo de instrumento) é de 9,1% em favor dos réus. Não há estatística acerca de qual percentual resultou efetivamente em absolvição, mas tal como ocorre no STF, ele deve ser bastante baixo. A maior parte dos provimentos de recurso dizem respeito ao regime de pena e à dosimetria.

     Sobre o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição), Barroso não o desconsiderou. Enfrentou o tema, reconhecendo que existem diversas possibilidades de interpretação do princípio, comprovando essa assertiva pela própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

 Desde a promulgação da Carta de 1988 até 2009, vigeu nesta Corte o entendimento de que essa norma não impedia a execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau de jurisdição, ainda que pendentes de julgamento os recursos extraordinário (RE) e especial (REsp) . Em linhas gerais, isso se dava pelo fato de que tais recursos não desfrutam de efeito suspensivo nem se prestam a rever condenações (a realizar a justiça do caso concreto), mas tão somente a reconhecer eventual inconstitucionalidade ou ilegalidade dos julgados de instâncias inferiores, sem qualquer reexame de fatos e provas. 

     Esse raciocínio só foi alterado em 2009, quando o STF adotou um posicionamento mais literal do artigo 5º, inciso LVII. Barroso defendeu que ocorreu a mutação constitucional, justificando uma nova mudança de posicionamento do Supremo em 2016. Nas palavras do Ministro:

Defendi a ocorrência de uma mutação constitucional, isto é, de uma transformação, por mecanismo informal, do sentido e do alcance do princípio constitucional da presunção de inocência, apesar da ausência de modificação do seu texto. Na matéria, tinha havido uma primeira mutação constitucional em 2009, quando o STF alterou seu entendimento original sobre o momento a partir do qual era legítimo o início da execução da pena. Encaminhou-se, porém, para nova mudança sob o impacto traumático da própria realidade que se criou após a primeira mudança de orientação. Com efeito, destaquei que a impossibilidade de execução da pena após o julgamento final pelas instâncias ordinárias produziu três consequências muito negativas para o sistema de justiça criminal. Em primeiro lugar, funcionou como um poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios. Em segundo lugar, reforçou a seletividade do sistema penal. A ampla (e quase irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos. Em regra, os réus mais pobres não têm dinheiro (nem a Defensoria Pública tem estrutura) para bancar a procrastinação. Em terceiro lugar, o novo entendimento contribuiu significativamente para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade. A necessidade de aguardar o trânsito em julgado do REsp e do RE para iniciar a execução da pena tem conduzido massivamente à prescrição da pretensão punitiva11 ou ao enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição definitiva. 

     Como se pode verificar, Barroso não desprezou a doutrina constitucional na fundamentação da sua decisão. Valeu-se de um instituto amplamente consolidado na Corte (a mutação constitucional), demonstrando os motivos que ensejaram a mudança da realidade das coisas. Não existe apenas uma interpretação possível do alcance do princípio da presunção da inocência. Barroso considerou que o termo "ninguém será considerado culpado" se refere a possibilidade do réu interpor os recursos especiais e extraordinários, mas não impede a execução antecipada da pena. 

     A Constituição não foi rasgada. O Supremo não deu a interpretação constitucional que parte da comunidade jurídica esperava. Optou por uma interpretação constitucional popular (o que não significa dizer que seja a mais correta), ou seja, amparada em elementos que possuem ressonância em diversos setores da população brasileira. Para isso, utilizou-se do instituto da mutação constitucional, ou seja, reconheceu que o próprio poder constituinte demandou essa mudança de posicionamento. Nós podemos até não concordar com o Ministro, mas não podemos dizer que ele não se ateve a dados empíricos ou que não se valeu da doutrina constitucional para decidir. 

     Em resumo, Barroso utilizou os seguintes argumentos constitucionais:

     a) "a Constituição brasileira não condiciona a prisão – mas, sim, a certeza jurídica acerca da culpabilidade – ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Ele diferencia o inciso LVII do LXI, afirmando que a Constituição trata da prisão nesse último inciso, exigindo apenas ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente, e não certeza de culpabilidade;

     b) "Em segundo lugar, a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes". No caso, deve ser ponderada em face do interesse constitucional à efetividade da lei penal;

     c) "Em terceiro lugar, com o acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação esgotam-se as instâncias ordinárias e a execução da pena passa a constituir, em regra, exigência de ordem pública, entendida como a eficácia do direito penal exigida para a proteção da vida, da segurança e da integridade das pessoas e de todos os demais fins que justificam o próprio sistema criminal".

Na discussão sobre a execução da pena depois de proferido o acórdão condenatório pelo Tribunal competente, o princípio da presunção de inocência está em tensão com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos objetivos (prevenção geral e específica) e bens jurídicos (vida, dignidade humana, integridade física e moral, etc.) tutelados pelo direito penal, com amplo lastro na Constituição (arts. 5º, caput e LXXVIII e 144). Nessa ponderação, com a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição, há sensível redução do peso do princípio da presunção de inocência e equivalente aumento do peso atribuído à exigência de efetividade do sistema penal. É que, de um lado, já há demonstração segura da autoria e materialidade e necessariamente se tem por finalizada a apreciação de fatos e provas. E, de outro, permitir o enorme distanciamento temporal entre fato, condenação e efetivo cumprimento da pena (que em muitos casos conduz à prescrição) impede que o direito penal seja sério, eficaz e capaz de prevenir os crimes e dar satisfação à sociedade. Nessa situação, o sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade – prisão do acusado condenado em segundo grau antes do trânsito em julgado – é superado pelo que se ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da Justiça. E mais: interditar a prisão quando já há condenação em segundo grau confere proteção deficiente a bens jurídicos constitucionais tutelados pelo direito penal muito caros à ordem constitucional de 1988. 

     Esta foi a sua tese final de julgamento:

É legítima a execução provisória da pena após a decisão condenatória de segundo grau e antes do trânsito em julgado, para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos constitucionais por ele tutelados, devendo-se conferir interpretação conforme a Constituição ao artigo 283 do Código de Processo Penal, para excluir interpretação diversa.

     A questão é polêmica. Não nego. Os ânimos no Brasil estão exaltados e os debates excessivamente polarizados. Certo ou errado, o Supremo Tribunal Federal tem julgado com os argumentos constitucionais de sempre, atrelado a dados empíricos e a uma postura mais protagonista no cenário político nacional.

     Devemos rever o papel do Supremo? A Constituição é rasgada quando não concordamos com a interpretação dele? Ela é respeitada apenas quando supre as expectativas ideológicas de determinados grupos? Perguntas que ficam no ar. 

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