terça-feira, 26 de julho de 2016

Sem dinheiro, tribunais do trabalho adotam medidas para não fechar

Um corte no orçamento deste ano de 90% no investimento e de 30% no custeio, segundo o Tribunal Superior do Trabalho (TST), obrigou tribunais regionais e varas da Justiça Trabalhista em todo o país a adotarem medidas emergenciais de contenção de gastos para evitar o fechamento. Mesmo assim, essas medidas afetaram o funcionamento desses órgãos e fizeram aumentar o número de processos à espera de julgamento.
Entre essas medidas, estão dispensa de estagiários; alteração do horário de abertura e fechamento dos prédios; desligamento forçado de equipamentos de informática e telefonia a partir de determinado horário; supressão de contratos de serviços terceirizados; revisão de contratos de segurança; e redução de despesas com serviços postais, consumo de energia e material de uso administrativo (veja ao final desta reportagem a situação de TRTs que estão entre os que enfrentam maior dificuldade financeira).
No caso da Justiça Trabalhista de Mato Grosso, por exemplo, uma das atingidas pelo corte orçamentário da União, todas as varas itinerantes do estado foram suspensas e também as viagens de juízes para substituir os que estão de folga ou férias. Em São Paulo e Goiás, os TRTs afirmam que o desafio é conseguir funcionar até o fim do ano.
Governo destaca liberação de verba

Procurada pelo G1 para comentar o assunto, a Casa Civil da Presidência da República destacou a publicação de uma medida provisória na semana passada que liberouR$ 353 milhões para a Justiça do Trabalho, com o aval do Tribunal de Contas da União (TCU). A MP foi publicada na última quinta-feira (14) no "Diário Oficial da União", como crédito extraordinário para pagamento de despesas correntes da Justiça do Trabalho.

O Ministério do Planejamento informou, por meio da assessoria, que o governo federal "tem colaborado intensamente" com a Justiça do Trabalho. "Um dos resultados desta colaboração foi a edição da Medida Provisória n° 740, que liberou R$ 353,7 milhões em crédito extraordinário para o pagamento de despesas correntes e recompôs o valor que foi cortado no Congresso Nacional neste orçamento."
De acordo com a assessoria, em 2017, "mesmo considerando que a situação orçamentária será bastante restritiva para todos Poderes e órgãos públicos, o governo federal continuará a colaborar com a Justiça do Trabalho para garantir a provisão dos recursos necessários para manter o funcionamento dos serviços de forma satisfatória".
O presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Martins Filho, considera que a quantia deve ser suficiente para assegurar o funcionamento dos tribunais até o fim do ano, mas prevê as mesmas dificuldades para 2017 se o orçamento não for reajustado; para alguns TRTs, o dinheiro da MP não será suficiente (leia mais abaixo).

Desemprego influencia

De acordo com o TST,  a situação da Justiça do Trabalho foi agravada pelo crescimento do desemprego, o que elevou também a quantidade de novas ações na Justiça Trabalhista. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego tem sido crescente, e o Brasil acumula mais de 11 milhões de desempregados.

Por esse motivo, o número de novos processos nas varas do trabalho (primeira instância) aumentou 7,9% de janeiro a abril de 2016 na comparação com o mesmo período de 2015. Passou de 839.658 para 905.670, de acordo com informações do TST.
Nesse mesmo período, a quantidade de processos que aguardam conclusão na fila das varas trabalhistas aumentou 10,5%. Nos TRTs (Tribunais Regionais do Trabalho), segunda instância da Justiça Trabalhista, a fila de processos pendentes aumentou 6% em 2016, informou o TST.
Evitar o fechamento

As medidas para economizar gastos na Justiça Trabalhista, nos casos mais críticos, tiveram o objetivo de evitar o fechamento dos órgãos e manter o atendimento ao público.

Segundo o presidente do TST e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, ministro Ives Gandra Martins Filho, um dos principais impactos do corte orçamentário foi na manutenção do sistema de informática. Quase 100% dos processos da Justiça Trabalhista são eletrônicos. Por isso, há a necessidade de que o sistema seja revisado periodicamente, mas a frequência diminuiu.
"Quando houve o corte de 90% do gasto de custeio com o PJE [processo de justiça eletrônico], isso é praticamente parar com a Justiça do Trabalho. Como é que a Justiça do Trabalho está funcionando se precisa de contrato de manutenção e investimento? Em área de informática, se não há investimento, a manutenção vai parando. O que está acontecendo? Os tribunais estão funcionando mais lentos, alguns param. São Paulo parou. Parou um bom tempo. Rio Grande do Sul estava com o mesmo problema. Quer dizer, não investir em informática ou não ter manutenção em informática é pedir para parar", disse o presidente do TST ao G1.
Segundo ele, o trabalhador é prejudicado porque os processos passam a levar mais tempo para tramitar.
"Se não é possível funcionar todos os dias, um dia pelo menos tem que parar por causa das contingências. Aí, em termos de gastos com custeio, o que acaba acontecendo? Primeiro, não se consegue receber todas as ações e, segundo, não se consegue solucionar rápido. Uma audiência que poderia ser marcada daqui a três meses vai ser marcada para daqui a um ano. E aí o trabalhador que precisa daquilo, que tem caráter alimentar, que é o seu salário, vai ficar todo esse tempo desempregado e sem uma fonte de custeio dele mesmo", explicou o ministro. 
Servidores

A Associação Nacional dos Servidores da Justiça do Trabalho (Anajustra) acrescentou que a precariedade das condições de varas e TRTs prejudica também o rendimento dos próprios funcionários.

Segundo a entidade, a Justiça do Trabalho foi "obrigada a empregar procedimentos drásticos  que afetam diretamente a prestação jurisdicional".
"Estamos vivendo o pior dos mundos, com um aumento expressivo do número de ações, a redução significativa dos recursos orçamentários, a diminuição do número de servidores que estão se aposentando e não estão sendo repostos e a exigência de produtividade e cumprimento de metas absurdas que têm provocado efeitos nefastos na saúde do servidor, com o aumento de doenças além de sofrimentos de ordem mental e emocional", afirmou Áureo Pedroso, diretor de Relações Institucionais da Anajustra.
Dinheiro da MP

Os R$ 353,7 milhões previstos na medida provisória como crédito extraordinário para pagamento de despesas correntes da Justiça do Trabalho serão distribuídos entre os TRTs levando em conta aqueles que estão em situação mais crítica, segundo Ives Gandra Martins Filho.

Na avaliação do ministro, o dinheiro deverá ser o suficiente para que os tribunais permaneçam funcionando até o fim do ano. As quantias que serão repassadas para cada tribunal, segundo Ives Gandra Filho, será definida pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho.
"O que nós estamos tentando fazer agora é um levantamento da real necessidade de cada tribunal, se dá para voltar à plena normalidade ou não e se esse dinheiro [da MP] é suficiente. Me parece que sim. À primeira vista, me parece que sim, tanto que nós estamos fazendo os acertos. Então, não é para nenhum tribunal ficar apavorado, nenhum tribunal achar que 'no nosso caso nós não vamos ter dinheiro", disse o presidente.
2017

Ele afirmou, no entanto, que se não houver um aumento no orçamento para a Justiça Trabalhista em 2017, a situação deverá se repetir no ano que vem.

O governo federal pretende fixar teto para os gastos públicos, reajustando o orçamento de cada área acrescentado somente o índice da inflação do período. Para Ives Gandra Filho, é necessário um orçamento maior que o estabelecido pelo teto para a Justiça Trabalhista.
"Agora, minha preocupação fundamental é com o orçamento 2017. Se não conseguirmos reverter ou abrir uma exceção para a Justiça do Trabalho – e é importante que o governo saiba, que o Congresso saiba –, nós vamos ter ano que vem o mesmo problema. Não é justo com a sociedade que se deixe um monte de trabalhadores aí sem poder ter acesso à Justiça, com o perigo de fechamento da Justiça do Trabalho por falta de previsão no orçamento do ano que vem, que pode ser feita e deve ser feita agora", argumentou o ministro.
Segundo a Anajustra, o dinheiro da MP dá mais condições para os tribunais funcionarem, mas não é suficiente para resolver as carências dos órgãos.
“Os R$ 353 milhões para a Justiça do Trabalho aliviam a situação dos tribunais do trabalho no custeio das suas atividades. Porém, não resolvem o problema, pois o corte feito pela Lei Orçamentária de 2016 na proposta original da Justiça Trabalhista foi de mais de R$ 844 milhões", afirmou a entidade.
Tribunais Regionais do Trabalho

Confira abaixo os problemas de alguns dos tribunais regionais do trabalho em razão das restrições orçamentárias.

Mato Grosso

Segundo o TRT-MT, o órgão recebeu R$ 17 milhões dos R$ 30 milhões inicialmente previstos para este ano.

Para pagar as despesas, o tribunal reduziu em 50% do contrato de serviços terceirizados, como limpeza e segurança do edifício-sede, em Cuiabá, e dos 29 fóruns trabalhistas no interior do estado.
Todos os estagiários foram dispensados, o horário de funcionamento foi limitado, e o tribunal passou a adotar medidas para economizar energia, como desligar o ar-condicionado. 
Depois o TRT-MT teve que suspender todas as varas itinerantes do estado. Essas varas são um mecanismo pelo qual o juiz e um servidor se deslocam até municípios sem varas do trabalho a fim de realizar audiências. Também foram suspensas as viagens dos juízes para substituir magistrados em férias e licenças.
O tribunal informou ainda que o sistema de armazenamento dos processos eletrônicos opera na capacidade limite e não há previsão de solução para o problema.
"Num esforço de guerra, suspendemos as varas itinerantes e só deslocamos nossos juízes substitutos para as varas cujos titulares estão em férias ou licenças em casos muitos excepcionais. O resultado é o adiamento de audiências e maior prazo para os processos serem solucionados”, explicou a presidente do TRT-MT, desembargadora Beatriz Theodoro.
São Paulo

O TRT-2, da região de São Paulo, afirmou que vem adotando desde o início do ano medidas "a fim de se evitar o máximo a inviabilização do funcionamento de suas unidades".

tribunal reduziu horário de funcionamento de aparelhos de ar-condicionado e elevadores e também reduziu o número de servidores terceirizados. Ainda foram suspensas as horas-extras e o trabalho aos sábados.
"Com a edição da medida provisória 740/2016, no último dia 13, espera-se que o TRT-2 consiga se manter até o final do ano, evitando-se assim que novas medidas sejam tomadas, em especial aquelas que possam atingir o público externo", afirmou o tribunal.
Para Lynira Sardinha, diretora do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário de São Paulo (Sintrajud), o TRT-2 chegou a cogitar fechamento a partir de setembro.
"Como eles [TRTs] têm autonomia administrativa, cada um foi pensando em como fazer as suas economias. Uma parte deles percebeu que em setembro alguns já fechariam as portas, como o TRT da 2ª região, que é o maior TRT do país, com o maior número de ações", afirmou Sardinha.
Goiás

O Tribunal Regional do Trabalho de Goiás (TRT-GO) anunciou na semana passada o corte de despesas e demissões para manter o funcionamento do órgão até o final de setembro.

Segundo o presidente do órgão, o desembargador Aldon Taglialegna, o tribunal tem uma dívida de R$ 11 milhões e corre o risco de fechar as portas.
Em nota, o TRT-GO informou que o dinheiro inicialmente previsto para o tribunal na medida provisória não será suficiente. O órgão depende de um remanejamento dos recursos.
"Infelizmente, o Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (GO) vai receber apenas R$ 960.497,00 desse crédito [da medida provisória], o que é insuficiente para arcar com as despesas de custeio do tribunal até o fim do ano. Com esses recursos, o tribunal ganha um fôlego suficiente para se manter por aproximadamente mais 15 dias, garantindo seu funcionamento até meados do mês de outubro deste ano. Por isso, a últimas medidas de contenção de despesas adotadas pelo tribunal no início da semana serão mantidas”, afirmou o TRT-GO.
Rio de Janeiro

O TRT-RJ sofreu um corte de 32% nas despesas de custeio para o ano de 2016, o que representa R$ 24,5 milhões.

Para economizar, uma série de medidas foram adotadas pelo tribunal: modificação do horário de atendimento ao público, com o objetivo de economizar energia (passou das 10h às 17h para 9h30 a 16h30), para aproveitar a luz do dia; redução de despesas com serviços postais; novos limites para a concessão de diárias e adicional de deslocamento a magistrados e servidores; ações para a redução de despesas com aquisição de material de consumo; e o corte de um estagiário por vara do trabalho.
O TRT-RJ recebeu um crédito extraordinário de R$ 2.942.449,00 por meio da medida provisória. Ainda assim, o órgão afirmou que, com esse dinheiro, tem orçamento para continuar operando apenas até o mês de novembro.
A desembargadora Maria das Graças Cabral Viegas Paranhos, presidente do tribunal, disse que vai com o Conselho Superior da Justiça do Trabalho uma nova recomposição no orçamento.
“Acredito que não vamos ter de fechar o tribunal antes da hora. Todos estamos enfrentando essa fase com coragem. É importante não desanimar, pois é na crise que nos reinventamos”, afirmou a desembargadora, por meio de nota da assessoria de imprensa.
Rio Grande do Sul

O TRT do Rio Grande do Sul afirmou que precisou economizar nos contratos de terceirizados, como vigilância e limpeza, e reduziu alguns horários. Também teve que dispensar os estagiários.

O tribunal informou que também ficou impossibilitado de nomear novos servidores para o lugar daqueles que tinham se aposentado.
Sem a MP, o TRT-RS argumenta que teria dinheiro para operar até agosto. Com os R$ 29 milhões que vai receber com a medida provisória, o tribunal entende que conseguirá chegar até o fim do ano, mas afirma que se desenha uma situação igual para 2017.
"Neste momento de crise, com as demissões aumentando, estamos tendo uma demanda maior e, paradoxalmente, temos menos pessoal. O país está em recessão. Com mais demissões, são mais reclamações trabalhistas. Então, nossa jurisdição está menos célere e menos efetiva pela falta de recursos e pessoal", afirmou o TRT do Rio Grande do Sul.

O novo CPC e a velha Fazenda Pública

O novo CPC perde a oportunidade de privilegiar a Justiça da decisão judicial e a efetiva realização de direitos constitucionais. O advento do novo Código de Processo Civil foi apresentado à comunidade jurídica e à sociedade sob a justificativa da necessidade de tornar mais célere e eficiente o processo judicial, assim como dar coesão sistêmica e segurança jurídica aos jurisdicionados, antena longa espera em que é vitimado o indivíduo até a satisfação de seu direito, entendendo-se como satisfação no caso, a apreciação da lide até sua final solução.
O ministro Luiz Fux, presidente da Comissão de Juristas encarregada da elaboração doanteprojeto do novo CPC, assim apresentou o anteprojeto, respaldando-se na legitimidade com que o documento teria sido produzido:
"No afã de atingir esse escopo deparamo-nos com o excesso de formalismos processuais, e com um volume imoderado de ações e de recursos. Mergulhamos com profundidade em todos os problemas, ora erigindo soluções genuínas, ora criando outras oriundas de sistemas judiciais de alhures, optando por instrumentos eficazes, consagrados nas famílias da civil law e da common law, sempre prudentes com os males das inovações abruptas mas cientes em não incorrer no mimetismo que se compraz em repetir, ousando sem medo. A legitimação democrática adveio do desprendimento com que ouvimos o povo, a comunidade jurídica e a comunidade científica."
Do excerto dessa apresentação do Anteprojeto ao Senado Federal, forçoso indagar que, ainda que a nova proposta tenha decorrido de um desprendimento motivado a dar ouvidos ao povo e as comunidades jurídica e científica, certamente, o que se pode dizer, é que, a despeito desse processo, poucos segmentos dos jurisdicionados foram contemplados em suas propostas. A Fazenda Pública certamente o foi, como veremos.
Da leitura da exposição de motivos do anteprojeto, a justificativa da sua proposta trilha pela busca na solução dos problemas e simplificação do sistema:
"Há mudanças necessárias, porque reclamadas pela comunidade jurídica, correspondentes a queixas recorrentes dos jurisdicionados e dos operadores do Direito, ouvidas em todo país. (...) Assim, e por isso, um dos métodos de trabalho da Comissão foi o de resolver problemas, sobre cuja existência há praticamente unanimidade na comunidade jurídica. Isso ocorreu, por exemplo, no que diz respeito à complexidade do sistema recursal existente na lei revogada."
Entretanto, não se resolvem problemas sem conhecer profundamente suas causas, ou sem levar todas em consideração. O anteprojeto limitou-se a creditar na mais óbvia e superficial causa do "excesso de formalismos processuais", e "volume imoderado de ações e de recursos" para a reforma processual. O mencionado mergulho em todos os problemas não foi decerto sobre as demais causas, não certamente as mais relevantes.
Ainda na exposição de motivos do anteprojeto:
"Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo".
E adiante:
"Em suma, para a elaboração do novo CPC, identificaram-se os avanços incorporados ao sistema processual preexistente, que deveriam ser conservados. Estes foram organizados e deram alguns passos à frente, para deixar expressa a adequação das novas regras à Constituição Federal da República, com um sistema mais coeso, mais ágil e capaz de gerar um processo civil mais célere e justo."
Entretanto, apenas aspectos superficiais e evidentes da morosidade judicial foram enfrentados, mas que, é cediço, não alcançará o anseio da sociedade. Sem investir numa reflexão crítica das causas que levam o cidadão à justiça, de quem seriam os maiores demandantes judiciais, os atores e os objetos das maiores quantidades de demandas, que sufocam e engessam o Poder Judiciário, e de todos os obstáculos que impedem a celeridade da solução definitiva, sem o devido e ousado enfrentamento, não haverá reforma processual hábil que ampare o anseio social.
Não se pode dizer que os fatores acima mencionados são desconhecidos, ou indisponíveis, pois que boa parte desses dados podem ser obtidos nas pesquisas e aferições do próprio Conselho Nacional de Justiça, se desconfiança houver em outras pesquisas não oficiais.
Ao manter as diretrizes gerais do sistema processual do CPC de 1973, e oportunizar instrumentos de solução de litígios de forma massificada, como a aplicação do sistema de precedentes e de incidentes de repetição, o novo CPC perde a oportunidade de privilegiar a justiça da decisão judicial e, com isso, a efetiva realização de direitos constitucionais, em franca contradição com a proposta da exposição de motivos, de que o processo venha a ser um instrumento de realização da justiça.
A busca por instrumentos de solução de litígios de forma massificada, nas quais as peculiaridades do caso concreto podem ser perdidas, no afã da celeridade processual, podem até ajudar na meta de melhoria quantitativa de prolação de decisões judiciais, mas, sem dúvida, podem também comprometer a justiça desta mesma decisão.
Sob outro prisma, como o sistema de precedentes sujeita o trâmite processual a suspensões, acaba por inibir que a ação seja julgada com celeridade, desvirtuando tal objetivo. A se dizer que, na prática, podem as ações ficarem indefinidamente sobrestadas, a despeito do prazo de suspensão dos processos em primeiro grau ter sido fixado em um ano1. Nada obsta que os Tribunais determinem a suspensão da tramitação por período maior de tempo, ainda mais se levar em consideração a longevidade que se demora hoje no julgamento dos repetitivos, o que parece razoável pressupor que tal situação venha a ocorrer.
Não se perca de vista que o NCPC tem ainda um fundamento autoritário, onde busca tolher deliberadamente a atividade do juiz de primeira instância, fazendo com que sua atuação se circunscreva a reprodução do entendimento dos Tribunais, em nome da suposta segurança jurídica.
Apontados genericamente os problemas e os riscos que a nova opção sistêmica foi fundada, decorre dessas críticas que a opção por esse sistema não vai ao encontro dos objetivos expostos. A bem da verdade, se visava a melhoria do sistema, culminou por se prestar a reforma de focos de interesse de determinados segmentos.
A busca de uma solução concreta e eficaz para a dimensão do problema passa, nesta perspectiva, pelo debate do papel que exerce a Fazenda Pública em juízo, aspecto esse que nem de longe foi considerado como reflexão sobre a melhor forma de lidar com a situação do assoberbamento do Poder Judiciário, uma vez que, sabe-se, são os entes da Administração Pública Direta e Indireta os maiores litigantes no Poder Judiciário.
A Administração Pública, quer seja no ato decisório administrativo, quer seja no processo administrativo que leva a efeito o ato, é a que mais desrespeita o ordenamento jurídico.
Segundo aferição do Conselho Nacional de Justiça, entabulada na pesquisa "Os 100 maiores litigantes da Justiça" de 2012, os setores públicos da esfera federal e dos estados foram os responsáveis por 39,26% dos processos que chegaram à Justiça de primeiro grau e aos Juizados Especiais entre janeiro e outubro de 2011, pesquisa essa, importante ressaltar, mensurada pelo fluxo de processos, não pelo estoque, assim, nesses números estão desconsideradas contingências especiais que poderiam influir nos dados (como as demandas de planos econômicos, por exemplo), o que implica em saber de imediato quem, ou que pessoas, presentemente, dão ensejo ao maior número de ações judiciais.
O setor público lidera a lista dos maiores litigantes, que, juntamente com os bancos, correspondem a 76% dos processos em tramitação!
No tocante à estratificação por setor, a pesquisa mostrou que o setor público foi o que mais figurou na Justiça Federal, na do Trabalho e na dos estados, com 12,14% do total de casos novos registrados nesses três ramos, entre janeiro e outubro de 2011. Depois, encontram-se os bancos (10,88%), o setor público municipal (6,88%), o setor público estadual (3,75%), para depois ser seguida pela telefonia (1,84%), pelo comércio (0,81%), e por aí vai.
A mesma pesquisa também traz a relação das organizações com mais processos por ramo do Judiciário. No âmbito estadual, a pesquisa mostra que os bancos e o setor público (municipal, estadual e federal) foram responsáveis por 34,4% dos processos novos que chegaram à primeira instância entre janeiro e outubro de 2011. Na Justiça Federal, o setor público federal e os bancos também apresentaram os maiores percentuais de processos novos, respectivamente com 68,8% e 13,4% na primeira instância, e 92,3% e 7,2% nos juizados especiais. E que se perceba a enorme distância dos percentuais entre o setor público federal e os bancos!
Neste panorama, o discurso que ampara a mudança das regras processuais é paradoxal à medida que, em tese, se o Estado é, e assim se declara, o maior interessado no funcionamento mais célere do Poder Judiciário, ao mesmo tempo, é um dos maiores responsáveis por seu assoberbamento. Portanto, há um profundo desalinho entre o discurso e a realidade.
Se verdadeiramente houvesse disposição política para enfrentar tal problema, não se poderia deixar de se debruçar sobre os seguintes aspectos:
1) Legalidade da atuação estatal de forma a provocar menos judicialização;
2) Nos litígios já propostos, deixar de manipular o sistema recursal, seguindo o dever de ofício de esgotar, à exaustão, os recursos processuais disponíveis pelo sistema, postergando a promoção do direito do jurisdicionado e deixando-o ao desamparo da efetividade de sua pretensão por anos, a fim de protrair a satisfação de uma ação em muitos casos juridicamente devida, quando o objetivo do Estado, paradoxalmente, deveria ser justamente o de promoção da justiça social amparada na lei.
3) Eliminar as prerrogativas processuais da Fazenda Pública, equiparando o Estado a qualquer outra parte, em verdadeira isonomia do tratamento processual entre as partes, amparado ainda na pretensão à democratização do processo civil.
4) A atividade jurisdicional deve ser melhor preparada para identificar o papel do Estado quando litiga. A magistratura e o aparato estatal têm como regra geral, equivocadamente, dar tratamento uníssono ao papel do Estado nas mais diversas relações jurídicas com as pessoas com que se relaciona.
Quanto a este último ponto, para os defensores do interesse público como argumento decisivo para o tratamento único que se deve dar ao papel do Estado em juízo, devemos recorrer aos ensinamentos de Celso Antonio Bandeira de Mello, que distingue o interesse público em primário e secundário:
"[…] a distinção corrente da doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários – que são os interesses da coletividade como um todo – e interesses secundários, que o estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade2. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal modo, defendendo interesses apenas ‘seus’, enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos3.
Esclarece ainda Bandeira de Mello:
"os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com os interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axiomaticamente os encarna e representa. Percebe-se, pois, que a Administração não pode proceder com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir.
Em face do exposto, fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do interesse público sobre o interesse privado só podem ser manejadas legitimamente para o alcance de interesses públicos; não para satisfazer interesses ou conveniências tão só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes governamentais
 (destaque nosso)"4.
À luz da lição professoral, embora imprescindível a defesa do erário, esta se tornou um paradigma para defesa do Estado em qualquer natureza de relação jurídica permeada pelo Estado, mesmo quando age em nome de interesse 'apenas seu, enquanto pessoa', diferente de quando age em nome do interesse público da coletividade como um todo.
O Estado não tem como papel único, em todas as suas relações, ser o ente arrecadador de impostos, ou guardião do erário público, de igual importância seu papel de empregador, o de prestador de serviço, e, nessa medida, também o de "indivíduo", quando age em nome próprio, na defesa do aparelho estatal. Nesse sentido, a atividade jurisdicional deve enxergar o Estado como tal, detentor de diferentes interesses e facetas, cujo papel enquanto parte em diferentes relações jurídicas deve ser cuidadosamente distinguida, privilegiando as relações de direito material envolvidas, e incorporando tais diferenças à forma de sua atuação no litígio.
Afinal, citando Celso Antonio Bandeira de Mello, "os poderes são instrumentais à realização dos fins públicos, não são prerrogativas que se prestam unicamente à preservação do erário".
De todo o comentado, a conclusão a que se chega é que as mudanças promovidas não o foram para o fim de satisfazer a morosidade e celeridade processual, tal como declarada na sua justificativa, pois que não combatidas as suas causas, mas foi um subterfúgio para que se prestem a outros objetivos, não declarados. A harmonização da atuação judicial do Estado com a proteção à dignidade humana, pressuposto do Estado Democrático de Direito, parece, lamentavelmente, ter passado ao largo do objetivo desta reforma.
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1 (art. 1037, §§ 4º e 5º, da Lei nº 13.105/2015)
2 Cf. Renato Alessi, Sistema Istituzionale Del Diritto Amministrativo Italiano, 3ª. Ed, Milão, Giùffre Editore, 1960, p. 197
3 Bandeira de Mello, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo, 13ª. Edição, Ed. Malheiros, p. 33
4 Bandeira de Mello, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo, 13ª. Edição, Ed. Malheiros, p. 33
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*Lara Lorena Ferreira é advogada do escritório Lara Lorena Ferreira Sociedade de Advogados.